Publicado 24 jan 2022
LGPD e Direito do Trabalho: quais dados não podem ser tratados na fase de mero recrutamento de candidatos ao emprego?
Direito do Trabalho
mão segurando celular

Nos termos da LGPD, dados só podem ser tratados caso existe alguma base de tratamento. As bases de tratamento estão previstas no artigo 7º ou no artigo 11 da LGPD. O primeiro, contempla as bases de tratamento para dados não sensíveis. Já o segundo dispositivo, prevê as bases de tratamento para dados sensíveis.

Sem dúvidas, o artigo 7º e o artigo 11 da LGPD contemplam rol exaustivo, como se nota pela redação das cabeças de ambos os artigos, que se vale da expressão “somente”. Desse modo, conforme a LGPD, o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado de forma lícita nas hipóteses taxativas previstas no artigo 7º ou no artigo 11.

Desse modo, o tratamento (exigência e/ou coleta e/ou armazenamento etc.) dos dados realizado empresa deve encontrar respaldo legal em um dos dispositivos acima citados. Mas, não é só. Além de se basear em uma das hipóteses legitimadoras do tratamento, o empregador deve observar o princípio da necessidade, inscrito no artigo 6º, inciso I, da LGPD.

De acordo com o princípio da necessidade, chamado também de princípio da minimização, o tratamento de dados deve se limitar ao mínimo necessário para a realização das finalidades previamente informadas, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados.

Assim, ofende o princípio da necessidade a empresa que trata dados desnecessários e impertinentes, ou seja, quando os dados tratados são dissociados da relação de emprego, mais especificamente da finalidade de escolha do melhor candidato ao emprego.

Alguns exemplos podem esclarecer melhor o entendimento acerca da exigência de inúmeros dados desnecessários dos candidatos ao emprego. Dentre os dados absolutamente desnecessários que são muitas vezes exigidos e coletados na fase de mera seleção, muitos deles sensíveis e com alto potencial discriminatório, pode-se mencionar os seguintes, “Último salário”, “Idade”, “Endereço”, “Número da residência”, “Bairro”, “Cidade”, “UF”, “CEP”, “Naturalidade”, “Nome da mãe”, “Nome do pai”, “Estado civil”, “Nome do cônjuge”, “Profissão do cônjuge”, “Possui filhos ( ) Sim ( ) Não”, “CPF”, “PIS”, “CTPS”, “Carteira de Reservista”, “Título de Eleitor”, “CNH”, “Categoria”, “Data de emissão”, “Apresenta ou apresentou problemas de saúde nos últimos 6 meses: ( ) Sim ( ) Não”, “Faz tratamento de saúde: ( ) Sim ( ) Não”, “Fuma e/ou bebe: ( ) Sim ( ) Não”, “Facilidade de abrir conta no Bradesco: ( ) Sim ( ) Não”.

Com efeito, na fase de mera candidatura ao emprego, os dados acima são claramente desnecessários. Alguns, somente para determinados cargos seriam necessários para finalidade pretendida que é o recrutamento. Não há nenhuma necessidade de saber o “último salário” do candidato ao emprego. Tal dado não tem relação alguma com a finalidade pretendida, qual seja, selecionar o melhor candidato ao emprego.

Já quanto à exigência e/ou coleta do dado “idade” é também dado desnecessário. Vale registrar que o tratamento deve se limitar ao mínimo necessário para a realização da finalidade pretendida, com abrangência dos dados pertinentesproporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados. Bastaria o formulário coletar se o candidato ao emprego é maior de “X” ou “Y” anos de idade, mas não coletar a precisa idade do candidato ao emprego, por ser dado que não tem relação alguma com a finalidade de seleção de empregados.

Também é desnecessário a exigência e/ou coleta do dado “endereço completo”. A coleta do endereço pode gerar dois problemas. Primeiro, porque muitas vezes as empresas deixam de contratar empregados que precisam de vale-transporte; segundo, pois pode gerar certa discriminação social em relação ao bairro que o candidato ao emprego reside. Portanto, por se tratar de dado impertinente e desnecessário, não pode ser exigido e/ou coletado.

Se já não bastasse, muitas exigem e/ou coletam dados relacionados à filiação do candidato ao emprego: “Nome da mãe”, “Nome do pai”. Mais uma vez, está-se diante de dados desnecessários e impertinentes, pois não se prestam a avaliar o melhor candidato ao emprego. Pode-se dizer o mesmo em relação à “naturalidade”, pois além de ser um dado impertinente e desnecessário, possui alto potencial discriminatório.

As irregularidades são mais evidentes quando se trata da exigência e/ou coleta de dados íntimos do candidato ao emprego, tais como “Estado civil”, “Nome do cônjuge”, “Profissão do cônjuge” e se “Possui filhos ou não”. São dados flagrantemente desnecessários, porquanto totalmente prescindíveis para a consecução da finalidade que é a seleção do melhor candidato.

Outros dados que também não se prestam para finalidade de seleção do melhor candidato ao emprego são: “CPF”, “PIS”, “CTPS”, “Carteira de Reservista”, “Título de Eleitor”, “CNH”, “Categoria”, “Data de emissão”. Ora, tais dados, quando muito, serão necessários apenas por ocasião da admissão de um candidato já selecionado. Mas, exigir e coletar tais dados fere de morte a LGPD, pois violam o princípio da necessidade.

De igual modo, alguns formulários de candidatura ao emprego exigem e/ou coletam dados sensíveis relacionados à saúde dos candidatos ao emprego, em flagrante violação ao princípio da necessidade, tais como: “Apresenta ou apresentou problemas de saúde nos últimos 6 meses: ( ) Sim ( ) Não”, “Faz tratamento de saúde: ( ) Sim ( ) Não”. O desrespeito à LGPD é patente, sobretudo porque não guardam relação com o recrutamento e porque dados sensíveis não podem ser tratados com base em legítimo interesse.

Por fim, para encerrar a extensa lista de dados exigidos e coletados em desrespeito aos direitos fundamentais dos candidatos ao emprego, empresas costumam exigir e coletar os seguintes dados: “Facilidade de abrir conta no Banco X ou Y: ( ) Sim ( ) Não.

Bom esclarecer que pouco importa se houve ou não a utilização indevida dos dados. O mero tratamento já é suficiente e bastante para caracterização de ato ilícito. A depender do tipo de dado, o mero tratamento já pode inclusive gerar danos morais presumíveis, ou seja, “in re ipsa”.

Mesmo antes da entrada em vigor da LGPD, o c. Tribunal Superior do Trabalho já tinha entendimento de que a exigência de Certidão de Antecedentes Criminais, fora das hipóteses excetivas autorizadoras, já era suficiente para caracterização de danos morais presumíveis.

No entendimento firmado em caráter vinculante pelo c. Tribunal Superior do Trabalho, ao julgar o Tema n.º 1 da sua Tabela de Recursos de Revistas Repetitivos, ficou decidido que gera danos morais “in re ipsa” a mera exigência de apresentação de certidão de antecedentes criminais pelos candidatos ao emprego, ainda que sejam contratados. A “ratio decidendi” do referido julgamento é perfeitamente aplicável aos casos acima, tendo em vista a semelhança de premissas fáticas.

É claro que, em hipóteses excepcionais e concretas, alguns dados que em regra são desnecessários, poderão ser tratados já na fase de mero recrutamento. É o que ocorre chamadas qualificações ocupacionais de boa-fé ou BFOQ – Bona Fide Occupational Qualification, nas quais não será ilegal a conduta de exigir certos dados sensíveis, cuja exigência é em regra proibida, em situações em que saber a religião, o sexo ou a orientação política for necessário para a operação normal de determinado negócio ou empreendimento. Cite-se, por exemplo, o caso de uma garçonete de origem chinesa para laborar em um restaurante chinês autêntico ou, ainda, alguns casos em que a privacidade dos clientes de determinada atividade exige pessoas de determinado sexo, como enfermeiras em determinados tipos de hospitais.

Em alguns casos, também pode ser válido o tratamento de certos dados sensíveis, relacionados à saúde do empregado, já na fase de mero recrutamento. É o que ocorre com a exigência de comprovantes de vacinação, sobretudo em tempos de pandemia da Covid-19 e especialmente se o processo seletivo envolver contato com outras pessoas.

Por fim, importante registrar que o consentimento do candidato não afasta a conduta ilícita, pois consentimento, que é uma base de tratamento, nada tem a ver com o princípio da necessidade. Ademais, ainda que assim não fosse, o consentimento para o tratamento de dados na relação de trabalho subordinado só é válido quando do tratamento puder advir uma vantagem jurídica e/ou econômica ao empregado.

Com efeito, sabe-se que a relação de emprego é estruturalmente assimétrica e que o consentimento não é totalmente “livre”, tal como exige o artigo 5º, inciso XII, da LGPD, que define o consentimento como a manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada.

É precisamente em razão da natureza não paritária da relação laboral que não se permite assegurar, com segurança, a liberdade da manifestação de vontade do trabalhador, que é requisito imprescindível de relevância jurídica do consentimento.