Publicado 10 fev 2022
Discriminação e teoria do impacto desproporcional
Discriminação

Discriminar é tratar iguais de maneira desigual com base em motivos desqualificantes, de modo que somente a existência de algum motivo razoável para o tratamento desigual pode descaracterizar a discriminação. Doutrinariamente se diz que o ato discriminatório traz consigo uma distinção ilegítima que promove diferenças entre duas pessoas ou entre dois grupos, o que contraria o princípio da isonomia, de envergadura constitucional (art. 5º, I, CR/88) e internacional (art. 1, da DUDH).

A discriminação pode ser dar de várias formas, inclusive de maneira indireta, entendida esta como a situação na qual uma conduta, aparentemente neutra, provoca uma discriminação a uma pessoa ou grupo, ou seja, a mera conduta leva à discriminação.

A discriminação indireta, a propósito, encontra previsão normativa na Convenção nº 111 da OIT, sobre discriminação em matéria de emprego e profissão (ratificada pelo Decreto nº 62.150/68), e uma das Convenções Fundamentais da OIT – “core obligation”. Segundo a norma internacional referida o termo discriminação compreende toda distinção, exclusão ou preferência fundada motivo desqualificante, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão.

A menção específica a “propósito” e a “efeito” no conceito geral de discriminação significa que, mediante tais termos, a discriminação abrange não só práticas intencionais e conscientes (discriminação direta), mas também realidades permanentes e medidas aparentemente neutras, mas efetivamente discriminatórias (discriminação indireta). Com efeito, determinadas condutas, embora aparentemente neutras, provocam e um impacto adverso desproporcional a um determinado grupo de pessoas.

A teoria do impacto desproporcional visa combater essa discriminação indireta e consiste na ideia de que toda e qualquer prática empresarial ou política governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas, como a propósito mencionado pelo C. STF na ADI nº 4424.

Como exemplo na seara juslaboral, pode-se mencionar o famoso precedente norte americano oriundo do caso “Griggs v. Duke Power Co.”. Neste, várias pessoas negras questionavam uma prática adotada pela empresa Duke Power Co., que condicionada a promoção dos seus funcionários a “testes de inteligência”. Os autores alegavam que aquela medida não era necessária para o bom desempenho das funções dos empregados, possuindo um impacto negativo desproporcional sobre os trabalhadores negros, já que estes, em sua imensa maioria, haviam estudado em escolas segregadas, em que o nível de ensino era muito inferior, o que os impedia de concorrer em igualdade de condições naqueles testes com empregados brancos.

Surge, nesse contexto a denominada Teoria do Impacto Desproporcional (disparate impact doctrine), por força da qual o exame de constitucionalidade de uma lei ou conduta, no que tange à isonomia, não deve cingir-se ao seu teor (à mera redação) ou aspecto formal, devendo-se aferir ainda se a sua incidência no suporte fático não resvala em discriminações. Ou seja, a compatibilidade de uma lei com o princípio da igualdade pode ser aquilatada em abstrato (discriminações diretas), mas também quanto aos seus efeitos práticos (discriminações indiretas).

Portanto, não é necessário comprovar-se qualquer motivação discriminatória para a censura judicial de uma medida aparentemente neutra, que, todavia, tem impacto diferenciado sobre indivíduos ou grupos. A própria Convenção 111 da OIT contempla a discriminação indireta quando faz referência a distinções, exclusões, restrições ou preferências que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade, de direitos. É dizer, não precisa ser intencional, basta a causa, o efeito, para que se configure a discriminação indireta. São medidas aparentemente neutras, mas efetivamente discriminatórias.

No julgamento da ADI nº 1946-5/DF, sobre o salário-maternidade, o STF se valeu da Teoria em questão. Segundo a Suprema Corte, a depender das circunstâncias, a inserção da mulher no mercado de trabalho poderá ser dificultada em razão dos encargos trabalhistas só devidos quando a contratada for mulher. Assim, a pretexto de proteger a mulher, no caso concreto, a lei pode acabar prejudicá-la, ou seja, discriminá-la indiretamente.

Na nº ADPF 291, o STF enfrenou a recepção ou não do crime militar de pederastia, tipificado no art. 235 do Código Penal Militar . O STF entendeu que a norma foi recepcionada, mas que as expressões alusivas à homossexualidade não o foram. O Ministro Luís Roberto Barroso, como um argumento contrário à recepção do crime de pederastia, utilizou a teoria em sua fundamentação: “Torna-se, assim, evidente que o dispositivo, embora em tese aplicável indistintamente a atos libidinosos homo ou heterossexuais, é, na prática, empregado de forma discriminatória, produzindo maior impacto sobre militares gays. Esta é, portanto, uma típica hipótese de discriminação indireta, relacionada à teoria do impacto desproporcional (disparate impact), originária da jurisprudência norte-americana. Tal teoria reconhece que normas pretensamente neutras podem gerar efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a um determinado grupo, sendo manifestamente incompatíveis com o princípio da igualdade”.